“QUANDO AS SOMBRAS AMEAÇAM O CAMINHO, A LUZ É MAIS PRECIOSA E MAIS PURA."

(Espírito Emmanuel, in "Paulo e Estêvão", romance por ele ditado a Chico Xavier)

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domingo, 11 de setembro de 2011

NUM 11 DE SETEMBRO: O BATISMO DE DIADORIM


ERA 11 DE SETEMBRO DE 1800 E TANTOS...

“ (...)

Tanta gente tinha o mundo... – eu pensei. Tanta vida para a discórdia. Agradeci ao Alaripe, mas virei para os outros nossos, perguntei:

– “Mortos, muitos?”

– “Demais...”

Isto o João Curiol me respondeu, prestativamente, sistema de amigo. Solucei em seco, debaixo de nada. Agora um me dizendo: que, com as ferramentas, uns estavam trabalhando de abrir covas para enterro, revezados. Alaripe fez um cigarro, queria dar para mim, que rejeitei. – “E o Hermógenes? – aí foi o que o Alaripe perguntou.

(...)

Ah, e a mulher rogava: – Que trouxessem o corpo daquele rapaz moço, vistoso, o dos olhos muito verdes... Eu desguisei. Eu deixei minhas lágrimas virem, e ordenando: – “Traz Diadorim!” – conforme era. – “Gente, vamos trazer. Esse é o Reinaldo...” – o que o Alaripe disse. E eu parava ali, permeio o menino Guirigó e o cego Borromeu. – Ai, Jesus! – foi o que eu ouvi, dessas vozes deles.

(...) E subiram as escadas com ele, em cima de mesa foi posto. Diadorim, Diadorim – será que amereci só por metade? Com meus molhados olhos não olhei bem. – como que garças voavam... E que fossem campear velas ou tocha de cera, e acender altas fogueiras de boa lenha, em volta do escuro do arraial...

Sufoquei, numa estrangulação de dó. Constante o que a Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade, como que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de Diadorim, casca de tão grosso sangue, repisado. E a beleza dele permanecia, só permanecia, mais impossivelmente.

(...)

Eu dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas da Bahia. Mandou todo o mundo sair. Eu fiquei. E a Mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o corpo. E disse...

Diadorim – nu de tudo. E ela disse:

– “A Deus dada. Pobrezinha...”

E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor – e mercê peço: – mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também soube... Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A côice d’arma, de coronha...

Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer – mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucúia, como eu solucei meu desespero.

O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real.

Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás, incendiável; abaixei meus olhos. E a mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:

– “Meu amor!...”

Foi assim. Eu tinha me debruçado na janela, para poder não presenciar o mundo.

(...) Como tinham ido abrir a cova cristãmente. Pelo repugnar e revoltar, primeiro eu quis: – “Enterrem separado dos outros, num aliso de vereda, adonde ninguém ache, nunca se saiba...” Tal que disse, doidava. Recaí no marcar do sofrer. Em real me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E todos meus jagunços decididos choravam. Daí, fomos, e em sepultura deixamos, no cemitério do Paredão enterrada, em campo do sertão.

(...)

Resoluto saí de lá, em galope, doidável. Mas, antes, reparti o dinheiro, que tinha, retirei o cinturão-cartucheiras – aí ultimei o jagunço Riobaldo! Disse adeus para todos, sempremente. (...)

(...)

Só que isso foi mais tarde.

Pois, primeiro, eu tinha outra andada que cumprir, conforme a ordem que meu coração mandava. Tudo agradeci, dei a despedida, ao seo Ornelas e os dele – gente-do-evangelho. Saí somente com o Alaripe e o Quipes, os outros deixei à espera de minha volta, que, por muita companhia numerosa, de nós não cobrassem duvidado. Mas, antes de sair, pedi à dona Brazilina uma tira de pano preto, que pus de funo no meu braço.

Aonde fui, a um lugar, nos gerais de Lassance, Os-Porcos. Assim lá estivemos. A todos eu perguntei, em toda porta bati; triste pouco foi o que me resultaram. O que pensei encontrar: alguma velha, ou um velho, que da história soubessesm – dela lembrados quando tinha sido menina – e então a razão rastraz de muitas coisas haviam de poder me expor, muito mundo. Isso não achamos. Rumamos daí então para bem longe reato: Juramento, o Peixe-Crú, Terra-Branca e Capela, a Capelinha-do-Cumbro. Só um letreiro achei. Este papel, que eu trouxe – batistério. Da matriz de Itacambira, onde tem tantos mortos enterrados. Lá ela foi levada à pia. Lá registrada, assim. Em 11 de setembro da éra de 1800 e tantos... O senhor lê. De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins – que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor... Reze o senhor por essa minha alma. O senhor acha que a vida é tristonha?

Mas ninguém não pode me impedir de rezar; pode algum? O existir da alma é a reza... Quando estou rezando, estou fora de sujidade, à parte de toda loucura. Ou o acordar da alma é que é?

(...)”


Fonte: fragmentos com destaques nossos, mantida a ortografia original, recolhidos do romance GRANDE SERTÃO: VEREDAS, de João Guimarães Rosa, 9ª ed., Rio de Janeiro : Livraria José Olympio Editora, 1974, pp. 452/458.

Imagem by Portal Luis Nassif, da capelinha em que fora batizado João Guimarães Rosa, em Cordisburgo (MG).